Negros têm menos acesso à cirurgia de câncer de pulmão
Estudo americano revela que intervenção antirracismo reduz os tempos de espera e pessoas negras acessaram a cirurgia em 28 dias após o diagnóstico – eram 43 antes da intervenção
Segundo um estudo publicado em fevereiro deste ano no Journal of Clinical Oncology, pacientes negros são menos propensos a serem tratados com cirurgia para câncer de pulmão do que brancos. E se forem submetidos à cirurgia, são mais propensos a sofrer atrasos no tratamento. O tempo do diagnóstico até a cirurgia é em média 6,7 dias a mais para pacientes negros do que para pacientes brancos. Cada semana de atraso no tratamento resulta em uma queda de 3,2% na sobrevida para câncer de pulmão em estágio inicial.
Para reverter essa situação, pesquisadores norte americanos realizaram a análise de uma intervenção anti-racismo chamada ACCURE – Responsabilização para o Tratamento do Câncer por meio da Redução do Racismo e da Equidade (em inglês, Accountability for Cancer Care through Undoing Racism and Equity), que inclui um sistema de notificação em tempo real baseado em registros eletrônicos de saúde mostrando marcos clínicos perdidos, relato das taxas de tratamento específico da etnia para as equipes clínicas e envolver uma enfermeira treinada em equidade racial para orientar os pacientes durante todo o tratamento. Além disso, foram observadas as taxas de tratamento específico da raça. Em cinco centros diferentes, os pesquisadores examinaram a rapidez da cirurgia de câncer, bem como as disparidades raciais no acesso rápido à cirurgia.
“Esse trabalho é muito importante e é preciso que se façam outros nesta área, com foco em estratégias sustentáveis para eliminar as disparidades”, diz Carlos Gil Ferreira, oncologista torácico e presidente do Instituto Oncoclínicas. “Tempos de espera mais curtos para cirurgia de câncer de pulmão são uma indicação de melhores cuidados e podem aumentar as taxas de sobrevivência para pessoas com câncer de pulmão de células não pequenas em estágio inicial”, afirma.
Para esta análise, os pesquisadores testaram a intervenção ACCURE em três grupos de pessoas com câncer de pulmão, totalizando 2.363 participantes. O grupo de intervenção incluiu 263 pessoas que participaram do estudo entre 2013 e 2016. O grupo de controle concorrente incluiu 302 pessoas que foram diagnosticadas e tiveram cirurgia de câncer de pulmão sem intervenção entre 2014 e 2015. Por último, o grupo de controle histórico incluiu 1.798 indivíduos que foram tratados para câncer de pulmão antes da intervenção entre 2007 e 2012. O desfecho principal foi se a cirurgia ocorreu dentro de oito semanas após o diagnóstico.
Tanto os negros quanto os brancos no grupo de intervenção foram operados mais rapidamente do que no grupo de controle histórico. O tempo médio para cirurgia foi menor, 23 dias, no grupo intervenção, comparado com 33 dias no grupo controle concomitante e 34 dias no grupo controle histórico. No grupo controle histórico, o tempo médio para cirurgia foi de 43 dias para negros, comparado a 32 dias para brancos. Esse tempo foi reduzido para 28 dias para negros e 21 dias para brancos no grupo intervenção.
O estudo mostrou que 87,1% dos pacientes negros e 85,4% dos pacientes brancos no grupo de intervenção receberam cirurgia dentro de oito semanas após o diagnóstico em comparação com 58,7% dos pacientes negros e 75% dos pacientes brancos no grupo histórico e 64,9% dos pacientes negros e 73,2% dos pacientes brancos no grupo concomitante.
Os especialistas analisaram as raízes das desigualdades raciais na comunidade e desenvolveram esta intervenção inédita para eliminar as lacunas de tratamento e cuidados oportunos para o câncer de pulmão em estágio inicial e obtiveram sucesso.
Brasil
“No Brasil, ainda não temos estudos consistentes em relação à etnia, mas a inequidade de acesso é a base do nosso sistema de saúde em oncologia. Para alguns tipos de tumor essa inequidade de acesso às novas tecnologias vem se acentuando na última década, sobretudo em câncer de pulmão, pelas diferenças entre SUS e Saúde Suplementar”, afirma Carlos Gil.
Segundo o médico, pacientes com adenocarcinoma de pulmão (um tipo de tumor), por exemplo, precisam fazer um teste molecular para buscar a existência de alguma mutação com potencial terapêutico, mas no Sistema Único de Saúde (SUS) isso, geralmente, não acontece, exceto em instituições que têm pesquisa ativa como o Inca, Icesp e o Hospital do Câncer de Barretos. “Caso os pacientes fossem testados, no entanto, teríamos um segundo problema. Identificaríamos as mutações da doença, mas não teríamos as drogas específicas para tratá-las, já que a APAC, sistema de pagamento de procedimentos oncológicos pelo SUS não cobre os custos de medicamentos orais para câncer de pulmão. E, por fim, a imunoterapia, uso de medicamentos para estimular o sistema imunológico a reconhecer e destruir células cancerígenas com mais eficácia, em geral, não está disponível na rede pública para o tratamento de pacientes com câncer de pulmão”, diz Carlos Gil.
“A falta de acesso à tecnologia e aos medicamentos de ponta impacta profundamente no índice de sobrevida e na qualidade de vida dos pacientes. Está mais do que na hora de algumas autoridades mudarem suas posturas em busca da medicina personalizada, mais inclusiva e democrática. Vários países já têm políticas nacionais para medicina personalizada”, conclui o médico.
Sobre Dr. Carlos Gil Ferreira
Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora (1992) e doutorado em Oncologia Experimental – Free University of Amsterdam (2001). Foi pesquisador Sênior da Coordenação de Pesquisa do Instituto Nacional de Câncer (INCA) entre 2002 e 2015, onde exerceu as seguintes atividades: Chefe da Divisão de Pesquisa Clínica, Chefe do Programa Científico de Pesquisa Clínica, Idealizador e Pesquisador Principal do Banco Nacional de Tumores e DNA (BNT), Coordenador da Rede Nacional de Desenvolvimento de Fármacos Anticâncer (REDEFAC/SCTIE/MS) e Coordenador da Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Câncer (RNPCC/SCTIE/MS). Desde 2018 é Presidente do Instituto Oncoclínicas e Diretor Científico do Grupo Oncoclínicas. No âmbito nacional e internacional foi Membro Titular da Comissão Científica (CCVISA) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). No âmbito internacional é membro do Board, Career Development and Fellowship Committee e do Bylaws Committee da International Association for the Research and Treatment of Lung Cancer (IALSC);Diretor no Brasil da International Network for Cancer Treatment and Research (INCTR); Membro do Board da Americas Health Foundation (AHF). Editor do Livro Oncologia Molecular (ganhador do Prêmio Jabuti em 2005) e Editor Geral da Série Câncer da Editora Atheneu. Já publicou mais de 120 artigos em revistas internacionais. Em 2020, recebeu o Partners in Progress Award da American Society of Clinical Oncology. Presidente Eleito da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica para o período 2023-2025.